sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Crônica: A mais violenta das violências

O que poderia ter feito? Chegou por trás. Pega. Toca. Enoja. Violenta sem que haja tempo para pensar. O que fazer na hora? Angústia e asco. Lá se foi seu orgulho. Seu corpo não lhe pertence. E agora também não o quer mais. Não pode. Não dá para se livrar dessa carcaça nojenta e suja. E agora, o que fazer?


- Liga pra polícia!


Não! A polícia não pode lhe ajudar. A polícia nunca pode ajudar. A polícia só ajuda a quem serve, e com certeza não é à ela. Ela não é governo. Ela não é estado. Ela não é patrão. Ela não é reitor. É mulher. Não é ninguém. Enquanto ela via todo seu "eu" escorrer pela sarjeta, a polícia estava fazendo com outra o que faziam com ela. Estava dando uma geral no jovem negro que voltava pra casa. Estava reprimindo o trabalhador de alguma fábrica que lutava pelos seus direitos, que lhe foram arrancados, direito de ter uma vida digna. Estava impedindo uma festa em república. Desocupando a universidade. Mantendo a ordem. Ordem burguesa. Cumprindo exatamente o papel que lhe foi dado!


- Você é uma idiota mesmo. Por que estava lá? Por que aquela hora? Por que com aquela roupa?


E era exatamente o que todos iriam dizer. Mas ela sabia no fundo que em nada a culpa era dela. E o seu direito de andar na rua? E a sua liberdade? E a sua sexualidade? Não. Ela não foi vítima de apenas mais um tarado desequilibrado. Sua violência foi brutal, a mais asquerosa que se pode sofrer, mas ela sabe que esse é apenas um tipo de violência contra a mulher. E todas outras que as mulheres sofrem caladas diariamente? Seu maior agressor era o Estado, o sistema capitalista. Pois quanto mais pobre a mulher é, já não basta a miséria da vida, maior a violência. Porque ela estava la, a pé, naquele horário. Podia ter ido mais cedo. Podia ter ligado para uns amigos. Podia chamar um táxi. Podia pagar por um táxi. Preferia não, mas podia, tinha essa opção. Mas e aquelas mulheres que não tem essas opções? Elas têm que passar pela rua abandonada, esperar o ônibus no ponto escuro, nos horários mais desertos do dia. Porque tem que ir trabalhar, para poder pagar as contas, criar os filhos, alimentar o marido. Seu trabalho por si só já é uma violência. Dez horas por dia, esfregar chão, limpar privada, passar por humilhações, abaixar a cabeça. Nenhum direito. Nenhuma estabilidade. - Não fale com ninguém! Almoce escondida! Faça seu serviço sem ser percebida! - É o que ela teve que aceitar para conseguir o emprego. Além do risco a sofrer na rua abandonada, ponto escuro, horário deserto. Pensando bem, passar por tudo isso e ainda ter que chegar em casa, lavar roupa dos filhos, engomar a do marido, por comida na mesa, preparar a marmita, esfregar mais chão, limpar mais privada - pelo menos agora é só uma, para ela, o marido, e os cinco filhos. Ela não sabia como evitar a gravidez. Ela engravidou e não podia tirar. Demorou até que alguém lhe ensinasse sobre a tal pílula de todo dia. - isso tudo também é uma violência contra ela. Inclusive a falta de informação sobre os contraceptivos. Inclusive o sexo que faz sem vontade com o marido. O sistema se apropriou dessa exploração para manter seus lucros, e violenta essa mulher a cada dia da sua vida.


- Mas e você, vai fazer o que agora?


Ela enxugou as lágrimas, parou de se olhar no espelho, seu único companheiro na última hora. Lavou o rosto. Respirou fundo. Decidiu tomar alguma atitude imediata. Foi até o CAISM* (e agradeceu por morar em Campinas e ter acesso ao CAISM) e se preparou para a bateria de exames. Para a maratona de remédios. Anticoncepção de emergência, anti hepatite B, anti HIV-AIDS, psicólogo, assistente social. 


No caminho pensou que essa violência não podia ficar assim. A sociedade não podia ficar assim. Cansou de se lamentar! O tempo passa, o mundo oprime e a gente se adapta enquanto se lamenta, e definitivamente ela não queria mais isso! Decidiu ir à luta. Recuperar seu orgulho. Exigir e arrancar seu direito ao seu corpo. O seu, e o daquela trabalhadora. Pensou que as duas juntas, estudante e trabalhadora, e todas juntas, estudantes e trabalhadoras, poderiam romper com a ordem, derrubar o poder, destruir o sistema. Juntas, poderiam se organizar e mostrar que cansaram de ser objeto, e que querem daqui pra frente ser sujeitos de suas próprias vidas, sujeitos da história. São mulheres. Querem ser mulheres. Querem lutar como as mulheres que são. Chega de submissão, é chegada a hora de subverter!


E fez disso seu objetivo de vida.


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*Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher, que possui um programa de atendimento às mulheres vítimas de violência sexual, e funciona dentro da Unicamp, 24h. (www.caism.unicamp.br)

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