Depois de uma noite bem mal dormida, que já vem seguida de noites mal dormidas, no calor
infernal dessa minha querida Morada do Sol e na ansiedade que sempre me
acompanha, não é de se espantar que o dia começasse com um bruto mau humor.
Logo pela manhã, cai a primeira lágrima. Tristeza.
Um misto de angústia e tristeza. Sabe, o sentimento de que
estamos sendo ignorados, e tudo aquilo que já doeu tanto, machucando de novo. Será possível que vai ser sempre assim? Pequenas
coisas, tão secundárias, mas que mexem tanto com a gente quando já estamos
fragilizados. Mas fragilizada por que?
Não sei. Mas a ansiedade... Ah, a ansiedade. Essa, nunca abandona. Uns tempos atrás, um certo bonito me repetia quase que diariamente “conhece um cantor chamado Di Melo? Ele
tem uma música que diz ‘calma, calma, calma, calma, calma’”. Pois é. A vida, em
seus métodos, diz calma.
Ok. Passou.
A tarde, cai a segunda lágrima. Raiva.
Uma sequência de tudo dando errado, sabe quando as coisas
fogem do prazo, as datas não batem, as pessoas não colaboram. Não é possível que meu dia vai ser assim!
Pequenas coisas, tão secundárias, mas que mexem tanto com a gente quando já
estamos fragilizados. Mas fragilizada por
que? Não sei. Mas o mau humor... Ah, o mau humor. Esse, nunca abandona. Uns
tempos atrás curava o mau humor com Maria Bethânia. Por sorte, tinha um CD no carro. Cantei bem alto Jeito estúpido de amar e Negue. Nossa, como você é ridícula.
Ok. Passou.
Na sequência de tudo dando errado, a sala de espera do
consultório médico me espera. É a última consulta. Sento e já abro meu livro,
sei que vai demorar. Entra uma criança, corre, abraça recepcionista, Renata, e
já coloca a mochila e a boneca atrás do balcão. Ela é muito nova, não deve ter filha desse tamanho. Não tem. É
filha da médica. Logo sai de trás do balcão, da uma volta na sala de espera,
olhando uma por uma cada mulher ali sentada.
- Coitada da minha mãe, tem muita paciente aqui!
Adoro crianças, sou sempre a primeira a sentar no chão para
brincar. Mas meu mau humor ainda reinava, então não dei muita bola pra ela.
Ouvi que ela tinha 6 anos. Isabela. Corria de um lado pro outro e, entre uma
paciente e outra, corria até o consultório da mãe.
- Só quero falar oi para minha mãe.
Pentelha maldita, vai
atrasar mais ainda minha consulta, que é a última. E ainda ta me
desconcentrando. Foi quando Leminski me arrancou, muito provavelmente, o
primeiro sorriso do dia. “O nascimento dos sovietes é um dos mais belos
espetáculos da história humana, esse rosário de massacres e baixezas, opressões
e tiranias”. Uau. Belíssimas palavras. Voltei
3 parágrafos, os li novamente. O capítulo se chama Outubro. Os parágrafos falam
do surgimento dos sovietes. Estava completamente entretida. Levei uns segundos para
me dar conta que havia uma criança parada em frente a mim. Levantei a cabeça.
Sorri e cumprimentei.
- Oi.
- Oi. – devolveu ela.
E agora? Ela ainda ta
me olhando! O que eu faço?? Antes de decidir o que falar, ela foi mais
rápida que eu.
- Você é bonita.
Sério? Ela falou isso
mesmo? Acho que demorei uns segundos para processar a informação e
responder.
- Obrigada! Você também é muito bonita.
Ela ficou sem graça. Correu até a mulher que estava umas
três cadeiras pro lado, e já observava a cena.
- Ela é bonita! – disse para aquela mulher, se referindo à
mim. A mulher riu e concordou.
E ela volta. Me oferece um copo d’água. Oferece para a outra
mulher. Corre até Renata e pega um papel para desenhar. Ouço ela perguntar meu
nome para Renata, que responde. HEIN?! É, a reação é sempre essa. Renata
repete, e ela pergunta como escreve. E escreve meu nome no papel. Alguém
pergunta o nome da boneca.
- É Paola, mas eu chamo ela de Lola.
Dou uma risadinha por dentro. Preciso contar para a Marie. Volto a ler, sorrindo. Ela volta até
mim.
- Seu brinco é uma cobra? Seu cabelo é grosso assim? O que é
isso no seu nariz? – e junto a cada pergunta, uma mãozinha que acompanha e quer
pegar. Solto o cabelo, deixo pegar. Pode pegar, mas por favor, não puxe!
Ela entra em uma porta, que da no corredor dos consultórios.
Nesse momento, já estou paralisada. “Na insurreição de fevereiro de 1917, a pré-revolução, as
massas russas derrubaram a autocracia czarista”. Li e reli tantas vezes a mesma
frase. Aquela menina ganhou minha atenção, a roubou do Leminski. Eu sorria
continuamente. E a essa altura, já há 1h30 na sala de espera, livar-me do mau humor não era tarefa para qualquer um.
A porta se abre, ela sai correndo na minha direção. Farelos
caem sobre o livro. Ai, o João Vitor vai me matar! Me oferece um pedaço de bolo.
- Tó. To comendo meu lanchinho. Meu pai que fez.
Volta correndo, a essa altura já tomando uma bronca da
Renata, que ri enquanto tenta fazer ela sentar e comer. Me concentro novamente,
dou continuidade na leitura. De canto de olho, vejo a porta se entreabrir.
Olho, lá está Isabela. Com a boca cheia, só a cabeça pra fora, abana a mão para
mim com a mesma mão que segura um biscoito de polvilho. Me oferece de longe.
Dou risada, agradeço e nego. Ela volta pra dentro, por alguns segundos, depois
volta correndo.
- Sobre o que é seu livro?
- É sobre a vida de um revolucionário.
- Um o que?
- Um homem, que lutou muito... – sou interrompida pela
bronca da Renata, e ela volta pr'aquela sala correndo.
Entra a última paciente antes de mim, e quando ela vê que
estou sozinha, volta até mim.
- Mas seu cabelo é assim mesmo, nasce assim?
- Não, não nasce... vê, são vários cabelos juntos.
- É como um penteado?
- É, é tipo um penteado.
- Você fica bonita com ele.
Sai a paciente, é minha vez, a médica chama. Isabela vai
indo comigo, pergunta minha idade.
- Tenho 25.
- Você é adulta ou adolescente?
- Nossa Isa, que pergunta difícil. Acho que sou adulta, mas
não me incomodo se você achar que sou adolescente.
Ela corre na minha frente e anuncia para a mãe que sou a
última paciente. A médica ri, agradece a ela e me pede desculpas. Desculpa por que? Por sua filha me entreter
enquanto você me fez esperar por 2 horas? Enquanto a médica vai fechando a
porta, ouço sua vozinha dizer
- Mãe, é sua paciente mais bonita.
- Mãe, é sua paciente mais bonita.
- Acho que ela gostou de você – diz a médica.
O procedimento não deu certo, voltarei depois de 5 dias. Se
não fosse pela Isabela, nesse momento teria caído a terceira lágrima, e seria
novamente de raiva. Mas ao sair do consultório, lá estava ela, me esperando
para mostrar como escovava o dente de uma gatinha no aplicativo do celular da
Renata. Vi, dei risada.
Saí conversando com Renata, marcando o retorno, e ela quase
me empurrando para fora. É óbvio, já eram 20h, provavelmente já havia
passado muito das suas 8h de trabalho diário e ela não receberia hora extra. Assim que ela
fechou a porta da clínica nas minhas costas, me dei conta que não havia me
despedido da Isabela.
E então aí, cai a terceira lágrima. Felicidade.
Sabe quando uma criança é capaz de mudar seu dia? Isabela
salvou meu dia, da tristeza, da angustia, da ansiedade, do mau humor. Seu
sorriso, sua inocência. E eu nem me despedi. Nem agradeci. É possível uma criança salvar seu dia assim? Pequenas coisas, tão secundárias, mas que mexem tanto
com a gente quando já estamos fragilizados. Mas
fragilizada por que? Não sei. Mas a felicidade... Ah, a felicidade. Essa,
nunca abandona!